As pernas de Proteus

Seria uma benção se amputassem minhas pernas, de modo que o restante do corpo ficasse livre deste cansaço o qual me ata a terra. Ultimamente, o esforço de andar é apenas um de todos os males físicos que, progressivamente, começam seu lento trabalho de levar-me, um dia, à total imobilidade. Acredito que esta será minha salvação. Cada uma das pernas é um rugoso tronco de árvore, escondido da humanidade pela arte dos alfaiates e sapateiros, aliás, os que mais se apiedam de mim. Em todas as vezes, precisam medir novamente, pois minhas pernas não têm limite para o crescimento, pode ser que daí a alguns anos meus lábios toquem a cabeleira do fícus centenário no pátio da igreja. Por sinal, da nave da paróquia, só tenho a visão de fora; seria preciso quebrar o portal até a altura dos anjos, de modo que eu pudesse ser inteiramente banhada pela luz de Deus. Mas não, sobre o pátio, o sol me aquece com uma ternura que eu penso ser mesmo a do Criador, e, assim, este é o consolo para quem, como eu, desde minha infância, estou proibida de sentar entre os santos. Agora, chegam fiéis atrasados, são o Sr. Maurício e a esposa. É um jovem casal. De minha altura, parece que os vejo do alto de um edifício, e acenam para mim. A moça vai ter um bebê em breve, vê-se pelo vestido que é uma árvore de frondosa copa, com ar em forma de balão:

– Mas, Monique, queremos que você vá hoje à nossa casa. Vamos reunir os amigos da paróquia. Por volta das nove, está bem?- a boquinha, pintada de violeta, mais acentua as sardas e os cabelos ruivos. Ela é tão pequena.

– E teremos os pastéis de Santa Clara. Até mais.

O Sr. Maurício me oferece uma mesura, retirando o chapéu de palha dos cabelos ralos. Depois ele e Angélica adentram o portal, ajoelham-se e oferecem o sinal da cruz ao altar. Contorno o adro e as pontas de minhas muletas sulcam o gramado, de onde despontam, aqui e ali, repuxos de água. Contribuo, todos os meses, com dinheiro para a paróquia. O padre Echeverría muito me agradece a prodigalidade. Nos dias em que me confesso com ele – quando venho de cadeira de rodas e posso, ali mesmo, perto do altar, contar meus pecados -, fico olhando para o teto, que é uma maneira de substituir o confessionário, já que é impossível para mim dobrar os joelhos. O trompe l´oeil foi restaurado. A Virgem Maria e seus querubins têm o rosado dos pés mais vivo, com as unhas enoveladas de carne sadia e gorda despontando do tule azul. Isto já não é o pecado? Sentir a sensualidade nos santos. Como na vez em que o Sr. Maurício resolveu me beijar. Com exceção de minhas pernas, sou uma mulher comum, até mesmo bonita para a maioria. A pressão de seus lábios nos meus fez com meu corpo fosse tocado por uma sensação inicialmente de bondade. Da mesma forma em que meu pai me beija, meus amigos, minha mãe, até um menino de minha infância, quando minhas pernas já começavam a crescer além do normal, mas podiam ser disfarçadas por meias, me beijou assim e eu esperei sempre por esta fonte. E Maurício, tomado de rubor, olhou-me nos olhos – pupilas de um animal calmo, ele sempre teve -, e disse:

– Eu sempre gostei de você – e fugiu para a cozinha porque precisava ajudar a mulher a trazer os doces de meu aniversário. Eu, no jardim de inverno – meus pais saíam do carro com sacolas e chegavam ao alpendre -, tive então medo de seu beijo. Eu, na cadeira de rodas, protegida por uma manta que me escondia as pernas e me oferecia apenas a parte bela, a parte frágil, o pequeno rosto de elfo de olhos verdes, magrinha como um ramo de pinheiro (como diz papai), descobria-me a peça-chave de um adultério. Mas se ele quisesse ter dado cabo de sua ousadia, se quisesse ter me visto na cama, o que diria dos gigantescos troncos de carne rugosa e rosada que medem três vezes a altura de minha parte sadia? Todas as noites me vejo assim, como uma mulher a ser entregue ao amor. Papai me veio com seus lábios salgados – ele tem gosto do mar, pensei, para três meses depois ter deixado minha mãe, sabor das ondas, que foi uma menina, trocou mamãe por uma menina, e aquele sal ainda está em mim, a matéria entranhada que me prende às algas -, e, no mesmo instante, segurei firme suas mãos, enredei os dedos nos dele, pois Maurício ressurgira com os doces, baixei o rosto, prendi-me às mãos de meu pai as quais também eram salgadas, eu só poderia fugir. Angélica, se você soubesse, aí num dos bancos da igreja, enquanto Echeverría anuncia o canto das oferendas, que seu marido me beijou no último aniversário, faria o quê? Inclinaria seu rosto de ondina sobre mim, e me beijaria nos lábios, com seus cabelos e sardas que vieram das águas de algum rio, seu abraço agradecendo a Maurício ter me desejado, você, a única amiga pura?

Tenho todo o cuidado com o último repuxo, o borrifador hirto ao lado do portãozinho branco que me leva à rua. O pé esquerdo é totalmente torcido para trás. O sapato, do tamanho de uma foca negra, arrasta-se e me provoca uma dor intensa. Sou como um desses artistas que usam pernas de pau, exceto pela total falta de elegância e maestria. Algumas pessoas podem quase tocar meus cabelos, pois atinjo as sacadas mais baixas das casas. Ali embaixo está uma cabra, trazida na coleira pelo menino. Este me aponta o dedo e diz para mim: “A senhora é engraçada”. Sou uma senhora. Uma mulher de três metros de altura, vinda de uma terra encantada medieval, onde as moças são muito altas, descendentes de árvores milenares, e, como estas, capazes de beber as nuvens. Se me fosse permitido, me inclinaria e deixaria o menino e sua cabra subirem em meus ombros. Caminharíamos, sem abandonar o levante, o garoto poderia colher frutinhas dos galhos que, nesta estação, pendem viçosos, daria as frutinhas para a cabra comer, este animal, sorteado na quermesse, do qual senti seu coração sob a pele lanosa, eu sentada, cumprindo meu amor à igreja, com o padre Echeverría retirando de minhas mãos o girassol de ramas de lã e entregando-o ao menino, a niná-lo entre os braços, como se acarinhasse um irmão menor, a língua rosada uma vela de barco em seu rosto, eu, que me deixo ser santa para os animais, desde pequena mamãe me presenteia com gaiolas e me permite soltar os pássaros, continuo nesta faina, compro gaiolas, abro as grades, com desejo de altura, sem que precise (todo o céu não é meu?), cortinas de vento, folhas, globos de luz no entardecer, eu tão em ânsia pelos cimos, vejo o menino contornar com os braços meu tornozelo direito; a cabra saltita, cintilam os guizos, as plumas de seu coração frágil. “Se me visse, sentada à borda da cama”, disse a Echeverría, depois do beijo de Maurício, “escondendo minhas pernas com o cobertor. Maurício me viu como uma sereia amputada. Mas poderia me desejar integra?” Não acreditava de que maneira fazia estas perguntas a um homem de Deus – o cavanhaque em duas pontas, deste sacerdote quase sempre vestido com roupas laicas, é um pequeno tridente, por sobre o qual o rosto aparentemente impassível banhava-se na luz dos vitrais, e, neste instante, Jó, abandonado à própria sorte, refulgia -, mas o meu pecado (como ainda me perdoar?) era o desejo por alguém. Pois no último verão, uma das artérias me fez o favor de eu ser soerguida em uma maca no hospital, também com pernas altíssimas como as minhas, só que esguias, iguais às de um flamingo. A junta médica precisou subir por escadas até me atingir. E o cirurgião, com uma cicatriz sobre a sobrancelha direita, apalpou minhas pernas, acariciou-as – sua mulher teria tido um filho, teria sabido da dor sonhada entre minhas coxas? -, como um pai. Papai também viera com sua moça, a menina de cabelos de feno e nariz torto, mas bela, tão bela que eu me perguntei o que ela acharia de sua enteada, apenas com uma bata branca cobrindo-me até à junção das coxas; o médico me disse que fariam tudo para não amputar; e eu quis tanto perdê-la. Na claraboia do quarto – depois que todos se foram, até a garota de papai, quem trançara os dedos em meus cabelos e me beijara o rosto, me fez sentir por ela a ternura (e trigos na messe) -, sorria o céu sem estrelas que, naquela noite, escondia a lua. Mamãe também viera, pediu ao médico com a cicatriz que dispusesse o ramalhete de lilases em um vaso com água na cômoda. Nunca conheci um homem tão delicado, porque arrumara as flores na ansiedade de um esteta, como se o lugar de cada haste pudesse ensaiar a perfeição que a vida não tem – ele vivia? Mamãe devia ter envelhecido uns dez anos, porém, seus lábios eram os mais jovens e felizes que eu percebera, adquirira a fragilidade próxima do vidro, uma mulher de vidro, talvez gerada em um país invernoso, entre cristais de gelo, quebradiça ao simples toque de uma lágrima. E suas lágrimas batizavam minha pele, enquanto inclinava-se sem poder suportar a alegria. Pois tornara-se alegre, como só os sozinhos podem ser – o médico terminara a arrumação das tulipas, hidras nascidas do joio do pintor flamengo. Não foi necessário amputá-la, como não foi necessário o franco cenho de Echeverría e sua displicente largueza em me enternecer, porque sua simples presença imóvel, tal qual a estátua da mulher de Ló, não me amedrontava. Erguia-se, ao contrário, ante meu ódio, serpente viscosa dentre toda a brancura suave – pois eu não odiara, em todas as vezes que me confessei, pelo fato de que não poderia ser a simples adúltera? Não desejei que Angélica perdesse o filho, ou que ele viesse ao mundo com pernas de três metros de altura, até mesmo com uma terceira, quarta e quinta pernas, como uma aranha deselegante? E meu pai? Que sua moça o traísse; afinal, que eu pudesse trair a todos, cravar-lhes, no centro de sua preocupação por mim, de seu verdadeiro amor, o punhal -, a face de Echeverría abria-se úmida, a rocha de um promontório, contra o que minhas pernas, solevadas por hastes fixas no teto, colidiam. Minha carne contra a pedra, contra a rudeza de Deus, já que todo o divino guarda a alegria neste rosto de parca beleza, no tridente espetado sob a boca de uma criança; enfim, esta criança envelhecida veio até mim, abriu meus dedos e aí pousou o pequeno crucifixo de prata, a barca insensata, mas, mesmo assim, minha vida.

O garoto e a cabra são chamados por uma voz alta, de mulher. Vejo-os ir se afastando, esmaecendo ao lado da cerca da igreja, pespontados pelos galhos das vides. Duas ramas brancas, o menino e a cabra – o sininho no pescoço tilinta -, o campanário canta o fim da amanhã. Atravesso a rua. Os carros apenas param como pombas alertas, ciscando à minha passagem, seu feliz adereço de um dia, quem sabe, não calmo. Dentro de um dos carros, a jovem retoca a sobrancelha, uma velha lê o jornal. A cabeça conhecida sai da janela, como um fruto pesado de doçura: “Mande lembranças ao Echeverría”. Poderiam até pensar, que eu fosse sua amante, por que não? E se ele, como Maurício, me beijasse, haveria a vergonha, o pecado, e mesmo o ódio? Mas ele só concede o aperto precavido da mão enrugada, igual o ceifeiro ruborizado perante as ervas – Echeverría, um amigo, e, também, Ariel, pleno de suave compaixão entremeada até mesmo por esta parcimônia com o mal: “Não, minha filha, você não tem que sofrer tanto porque um homem a beijou, veja isto como uma manifestação da beleza”. E sua voz não conseguia, de tão pequena, ecoar dentro da nave. Quando juntou suas mãos sobre minha perna no hospital – agora, meus pés se cruzam e as muletas estão prestes a cair, já que não me desviei o necessário da calçada -, foi a mesma imagem do fícus gigantesco que me veio. Se ele pudesse tombar pelo peso de todo o pecado, seria como o Cristo despregado da cruz, sem nenhum auxílio, somente caindo em razão do fardo do mundo. Eu, então, me firmo em um esteio de madeira que divisa o quintal da casa do perímetro da calçada. A muleta direita quase atinge uma garotinha. Ela sorri. A criança sorri e, logo, sua mãe a acolhe do perigo, olha-me como a assassina. Há gargalhadas de garotos, alguns carros buzinam, o guarda, lá de baixo, um disco de louça sob a boina, pergunta: “Posso fazer algo?” Não se preocupem, foi só por meu próprio descuido. Só por ter me lembrado do Sr. Maurício, de Echeverría, de papai, do médico com a cicatriz. “Veja, é apenas para alertar você, não para assustar você” – o médico não olhava para mim, mas para minha mãe – “Conseguimos drenar o coágulo. Monique está salva. No entanto, é preciso todo o cuidado, pois pode voltar. Há casos em que volta, a medicina está certa, pelo menos quanto a isto”. Minhas pernas se dobram, um joelho tomba sobre o cimentado; o outro, sobre a sebe. A medicina só conhece um pouco mais de cem casos desses no mundo. E, talvez, então, ela só conheça agora a pequenina cabeça de uma filha de Proteus imergindo nas roseiras; as gotas de sangue desenhando as rosas e o gramado. Porém, Deus salvou meus olhos. Eles podem ver, do alto do esteio, a porta de mais de três metros de altura, por onde, todos os dias, entro e saio de meu lar. A porta por onde meu corpo, a parte serena, delicada, anseia o crime frágil. Lá dentro o sofá, a estante de livros, o abajur em forma de lince com a campânula, os tapetes feitos por minhas mãos, as cortinas que, nos dias de vento, são crianças gordas e brancas, sem rosto. Eu posso pintar seus rostos, e há destas minhas pinturas no ateliê, de crianças gordas e brancas brincando com repuxos de água e cestos de ervas; há Angélica gerando um mundo de folhas e placenta, córregos verdes por onde o chapéu de palha de Maurício encontra o ramalhete de lilases. A foto de quando, pela primeira vez, a máquina do hospital criou uma pintura de mim, cinzenta e láctea, de um esqueleto de menina com troncos e raízes de baobás brotando do corpo; a foto de minha conferência na Fundação Proteus, do diretor que me apresentara a jovem cuja mão esquerda era uma estrela-do-mar gigantesca, ou um sol róseo com braços, tímida, humilde, ignorante da arte, guardada a sete chaves do desejo. Dediquei a ela uma escultura, e, se, soubesse, o quanto gosto de admirá-la quando estou sobre a cama – meus olhos de estátua decapitada continuam não vazados por espinhos, mas, pela vida, por todos que se juntam em torno de mim, quase a querer me segurar como a Rodes na rua -, e, livre, imitando-a, brinco com minhas pernas como se brincasse com um moinho.

3 Comentários

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3 Respostas para “As pernas de Proteus

  1. arco aurelio tasca

    Interessante, continue sempre nos brindando com seus contos. Parabéns. Marco Aurélio tasca

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